sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A morte que vive...

Olá mãe, por lamento meu não pude escrever-te mais cedo nem tal me foi possível.
Mas se vos escrevo é com pesar no coração e um arrependimento mortal, aqui neste buraco maldito escavado pela explosão da própria morte que se abate todos os dias sobre nós.
Não sei porquê que eu fui na conversa do tio Aníbal, ao que parece a glória da guerra e aclamações gloriosas e triunfantes num retorno recheado de saudades e glória eterna não são o que o espelho mostra.
Depois de Brest entrei no “train” como dizem os Franceses, é  uma locomotiva, a primeira vez que andei numa, e tudo para vir para onde a morte me trouxe…
Fomos até uma cidade chamada Amiens, escombros e destruição por todo lado, mas não nos deixaram descansar, fomos logo inseridos na nova divisão criada, a Segunda Divisão Portuguesa.
É irónico que, logo à nascença, o padre já veio com o baptismo… mas este era um baptismo de fogo e morte, nem luz nem estrelas podem dar um ar da sua magnificência nesta terra desertada, onde os únicos humanos que se avistam, estão deitados no chão, mortos ou em gritos horripilantes de dor, e a morte a caminhar ao lado deles pacientemente.
Depois fomos para Estaires de locomotiva, chegando lá, foram criados os regimentos e como se o cavalo do Tio João a correr se tratasse, vi-me inserido ao lado de 8 homens que não conhecia, mas que provavelmente iria passar muito tempo com eles.
Apenas pude conversar com 3 deles, o António, o Manel e o Artur, que eram gente fina do norte do nosso querido Portugal, que tinham tido a má escolha de virem para a guerra pelos sonhos de glória, oh glória, tu que nos iludes e nos destróis como se de bonecos fossemos!
Fomos imediatamente mandados para a linha da frente, e mãe, digo-te isto com pesar e agradecimento por não admirares este horror, é o inferno na terra. O padre falava de um inferno de dor e sofrimento eterno, isto pode não ser eterno, mas no pouco tempo em que já cá estou, a eternidade não é um tempo, é apenas este momento em que te escrevo.
De todos os homens que aqui se encontram sob tutela do General Gomes da Costa, apenas alguns realmente desejam estar cá, por sentirem que isso é o dever deles de honrar o país deles.
Mas pergunto-me que honra há em morrer pelo nosso querido Portugal e não ser lembrado, nem sequer reconhecido como derramador de sangue pela glória e prestigio de Portugal?
Há mãe o sofrimento que sinto e o medo de morte que sinto por cada dia que aqui passo no meio de animais que tentam devorar as ovelhas, mas até agora não sei quem realmente faz o papel de ovelhas ou de leões. Não sei de que forma poderei retornar, mas prometa-me que se lembrará de mim da mesma forma que me lembro de vocês, querida mãe e família amada!
Chovem obuses como se a natureza própria se encarrega-se de tal função, não chove apenas neste lado nesta terra macabra, mas chove do outro lado também. Levo-me a perguntar as razões para tal horror se passar no presente, na flor da vida que perde as suas pétalas, e perdeu-as todas e só resiste porque tem um coração indestrutível que vive sem saber como nem porquê, mas continua…
Áh! Morte maldita que nos rodeias e escolhes conforme o que desejas o fim de cada um de nós, e tudo o que podemos fazer para isso é correr em frente e atirar, na esperança que não nos toques a nós, mas aos boches.
Lamentos e choros, é o que se traduz esta minha vida aqui nesta guerra, e lamento muito mãe por te fazer sofrer com esta carta, mas lembra-te que o sofrimento não é mais do que uma ilusão, porque a realidade, é a morte e essa é o que mais real se vê por aqui.
Os Alemães atacaram recentemente, foi uma chacina, mas não vos posso escrever agora sobre isso, porque é o motivo da minha dor e da realidade que entrei, mas falarei-vos disso mais tarde, não durmo há 2 dias e preciso de descansar, até que a morte me volte a acordar.
Eu amo-vos e espero-vos poder escrever de novo, até lá, recebai esta minha carta encharcada com as minhas lágrimas perfumadas com o meu amor, porque se há algo que ainda me faz querer voltar, é o amor das saudades que vós me provocais.
Apenas vos peço que não se esqueçam do vosso querido filho que vos ama e vos tem no coração…
Alípio Saraiva

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