sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

E assim aconteceu...

Morreu.
Foi assim que aconteceu. Numa sucessão de acontecimentos, ainda que demarcados, existiam apenas para este propósito, e servindo o propósito para que foram criados, não mais existiam.
Não que seja de lamentar, ou até de aplaudir, mas factos intermediários, que harmoniosamente colidem, e embora tão parecidos, tão diferentes.
Acordava ele, rapaz inteligente, bom futuro, 20 anos, com uma base sólida para prosseguir na vida, destruído por dentro, por fora um transparecer de calma e alegria.
Acordava ele, já atrasado para as aulas, vestia-se e preparava-se para a escola, onde certamente ele faria o possível para orgulhar os pais que tanto estima e ama. Estava ele pronto, roupa vestida, com calma e serenidade no rosto, anda a passos largos para a porta de saída, pensativo e profundo, como se não mais presentes estivesse no corredor, mas sim no seu intimo.
Que sentimento era este?

Chegara ele tarde, da última madrugada, relativamente sóbrio, sem qualquer sinais de não estar normal. Fora beijar a mãe e avisá-la da sua chegada. A mãe visivelmente feliz, abraça-o e volta a dormir, o dia tinha sido duro com ela, muito trabalho para poder dar uma vida ao seu filho, vida ela que ela não teve, mas que mata-se para dá-la, e não a usufrui...
Sentara-se no sofá, pensativo. Não sabe o porquê, são pensamentos estranhos, decididamente fora do contexto, mas porquê?
Tempo passou rápido, desligando a televisão de um simples gesto, vestiu o pijama, lavou os dentes e deitou-se.
Não dormiu muito, dormiu o suficiente para ganhar fôlego para o dia que se avizinhava, teria escola e compromissos, sem grau de prioridade.

Recuperou a realidade, pegou nas chaves e abriu a porta, ouve-se uma voz de dentro do quarto da mãe. A mãe, mulher com os seus quarentas, com poucas veias, com um olhar brilhante e feliz, beija-o e deseja-lhe um bom dia. Ele, nitidamente feliz, abraça-a e levanta-se, suavemente, e caminha para a porta, para e olha mais uma vez para o sorriso da mãe, fecha a porta e apaga a luz. Esse gesto avivou-lhe o pensamento estranho, que significaria tal pensamento?
Caminha em direcção à porta, pega no seu casaco castanho que se esquecera de vestir, e pusera a mala nas costas.
Desce as escadas, olhando para fora, num dia chuvoso, nuvens pesadas, negras mas com cortes no céu, onde avista claridade, onde o sol incide na parede negra e torna-a clara.
Sai porta fora, vira à direita, nuns arbustos e caminha, pensativo e no seu mundo. Embora esteja no mundo que se move e não para, ele põe-se no seu mundo. Um sentimento que nunca sentira invadi-o. O que sentirá?
De repente, tudo torna-se negro...

Não dormira toda a noite, tinha um trabalho para fazer e casa para arrumar. Mulher nos seus trintas, com a sua vida feita, ainda a tirar o curso. Não se deu ao luxo de descansar, pois o trabalho exigia-lhe toda a concentração. Acordara o marido, pedindo que se despachasse enquanto ela se arranjava. Tal tarefa não se mostrou difícil, os largos anos de experiência permitiram-lhe fazer isso em tempo recorde, e estar pronta em 5 minutos. Teria de estar às 10 horas em Lisboa, tempo apertado, e ouvira a rádio a relatar que a IC19 estava concorrida, acidente na via para Lisboa, fila de trânsito longa, e sem outros caminhos conhecidos para lá chegar.
Todos prontos, e pequeno almoço comido, embarcam no carro. O marido, homem nos seus trintas, ia para o escritório, que ficava a caminho da IC19.
Ele parou, perto de um edifício vitrificado, onde se via o reflexo dos prédios e cidade em si, saiu do lugar do condutor, despediu-se da sua esposa com um beijo e subiu. A mulher, embora se mostrasse calma, estava, interiormente, eufórica e histérica. A pressa fazia-se notar, tinha de estar em 40 minutos na universidade, e as condições na IC19 não eram das melhores. Tomou o caminho que melhor conhecia, numa pressa que lhe fazia medo, pois temia ela que a policia poderia eventualmente notar o veículo dela e mandá-la parar, e a crise não lhe tinha passado ao lado, e dinheiro não possuía para multas...

Trabalhava ela das 22 às 3 da manhã, para poder pagar a universidade, vida difícil, mas que vivia do dinheiro do marido, embora escasso, dava para sobreviver.

Passou por uma rua estreita, com pressa mas nitidamente cansada, saindo perto de uma rotunda, e a dirigir com pressa. Os carros passavam, numa monotonia constante, e ela, assim que achou que caberia naquele espaço, entre 1 carro e um camião, meteu-se. Calculou mal, um carro batera nela, e com o impulso, o carro dela foi puxado em direcção a uma parede. Não vira ela o Opel na rotunda. Acordou ela, num pranto profundo, choro e perdida.
Ouvia-se as sirenes, o amontoar-se de gente, e o ar aterrorizado de umas mulheres já velhas.
O carro que ela dirigia, foi contra um rapaz desconhecido, que caminhava provavelmente para a escola. Desconhecido mas não esquecido. O rapaz inocente, que vivera até ao momento, teve o fogo da vida apagado.
Casaco castanho vestia e mala semi-destruída nas costas.
E morreu mais uma pessoa, que esta sociedade criou e aniquilou, como se esse fosse o propósito dele.

Se ele não se tivesse atrasado, acordado mais cedo, se ele não tivesse voltado atrás para beijar a mãe, se não tivesse parado para olhar para ela, se ele não tivesse vestido o casaco, descido as escadas mais devagar tivesse escolhido outro caminho ou até mesmo se ido de autocarro, não teria morrido daquela forma.

Ela por outro lado, se tivesse dormido, se não se preparasse tão rapidamente, se não ouvisse a rádio, se não estivesse cansada, se não estivesse com pressa, se ela tivesse parado na rotunda e esperar que pudesse eventualmente entrar na rotunda, não teria provocado tal acidente.

O rapaz desconhecido, tinha apenas a chuva como lágrimas.
Uma cadeia de reacções provocaram uma situação que poderia ter sido evitada, o que levou a que isto realmente acontecesse? Porque é que apenas um deles não adormeceu ou simplesmente ficasse em casa? Porque tinham eles de sair?

Todos estão ligados numa rede, e essa rede faz as coisas acontecerem, mesmo que não se saiba nem se tenha consciência. O sentimento do rapaz, era talvez uma aviso da rede sobre o que iria acontecer.
Será que ele sentia algo como se fosse o último dia dele?
Será que ela não sentiu nada?

E vidas foram destruídas, e o mundo continua... a rede continua... E as lágrimas caiam do céu... E o mundo tornara-se negro e sem valor... E não mais existia...

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